quinta-feira, 9 de julho de 2015

Amor em estado bruto - Martha Medeiros


O que é, o que é? Faz você ter olhos para uma única pessoa, faz você não precisar mais sair sozinho, faz você querer trocar de sobrenome, faz você querer morar sob o mesmo teto. Errou. Não é amor.
Todo mundo se pergunta o que é o amor. Há quem diga que ele nem existe, que é a verdade uma necessidade supérflua criada por um estupendo planejamento de marketing: desde crianças somos condicionados a eleger um prín­cipe ou princesa e com eles vi­ver até que a morte nos separe. Assim, a sociedade se organiza, a economia prospera e o mundo não foge do controle.
O parágrafo anterior respon­de o primeiro. Não é amor querer fundir uma vida com outra. Isso se chama associação: duas pes­soas com metas comuns escolhem viver juntas para executar um projeto único, que quase sempre é o de constituir família. Absolutamente legítimo, e o amor pode estar incluído no pacote. Mas não é isso que define o amor.
Seguramente, o amor existe. Mas, por não ter­mos vontade ou capacida­de para questionar certas convenções estabelecidas, acreditamos que dar amor a alguém é entregar a essa pessoa nossa vida. Não só nos­so eu tangível, mas en­tregar também nosso tempo, nosso pensa­mento, nossas fantasias, nossa libido, nossa ener­gia: tudo aquilo que não se pode pegar com as mãos, mas se pode ten­tar capturar através da possessão.
     O amor em estado bruto, o amor 100% puro, o amor desvinculado das regras sociais é o amor mais absoluto e o que maior felicidade deveria proporcionar. Não proporciona porque exigimos que ele venha com certificado de garantia, atestado de bons ante­cedentes e comprovante de renda e de residência. Queremos um amor ficha-limpa para que possa­mos contratá-lo para um cargo vi­talício. Não nos agrada a ideia de um amor solteiro. Tratamos rapi­damente de comprometê-lo, não com nosso amor, mas com nossas projeções.
O amor, na essência, necessi­ta de apenas três aditivos: corres­pondência, desejo físico e feli­cidade. Se alguém retribui seu sentimento, se o sexo é vigoroso e se ambos se sentem felizes na companhia um do outro, nada mais deveria importar. Por nada, entenda-se: não deveria importar se o outro sente atração por outras pessoas, se o outro gosta de fa­zer algumas coisas sozinho, se o outro tem pre­ferências diferentes das suas, se o outro é mais moço ou mais velho, bonito ou feio, se vive em outro país ou no mesmo apartamento e quan­tas vezes telefona por dia. Tempo, pensamento, fantasia, libido e energia são solteiros e mor­rerão solteiros mesmo contra nossa vontade. Não podemos lutar contra a independência das coisas. Alianças de ouro e demais rituais de matrimônio não nos casam. O amor é e sem­pre será autônomo.
Fácil de escrever, bonito de imaginar, porém dificilmente realizável. Não é assim que estru­turamos a sociedade. Amor se captura, se domes­tica e se guarda em casa. Às vezes forçamos sua estada e quase sempre entregamos a ele os di­reitos autorais de nossa existência. Quando o perdemos, sofremos. Melhor nem pensar na possibilidade de que poderíamos sofrer menos.

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